quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Nos olhos de quem não vê.




Em terra de cego quem tem um olho vê menos.
Pensar em cegueira pode parecer um pesadelo. Uma vida no escuro levaria alguns à loucura, porém ao refletir mais profundamente, descobre-se que a falta de visão na verdade exige outra forma de encarar o real e, pode desenvolver nossa subjetividade e nos levar aos caminhos mais diversos de auto-conhecimento e imaginação.
O músico e letrista Hermeto Pascoal, comenta sobre a sua forma de enxergar o mundo apesar de sua visão parcial: “Nunca senti falta da visão, porque não sei como os outros vêem, isso enriquece minha personalidade”.
A falta de um sentido tão importante, em um mundo cada vez mais visual, exige muita criatividade e coragem para enfrentar nossos próprios monstros e tabus, mas não passa de uma questão de ponto de vista.
Ponto de vista
“Se Romeu tivesse olhos de falcão não se apaixonaria por Julieta, pois os olhos dele veriam uma pele nada agradável”. Quando o escritor José Saramago afirma tal imagem, ele nos convida a uma nova forma de ver o valor que damos ao sentido visual, pois o excesso é perigoso e ver demais pode significar não ver nada.
O olhar mal treinado também pode nos enganar, por isso precisamos analisar todos os aspectos de um acontecimento antes de imprimir qualquer juízo sobre ele.
Como o professor de literatura Paulo Cezar Lopez esclarece: “Não existe realidade, apenas um olhar condicionado, cada experiência de olhar é um limite, a realidade está mediada por nossas experiências”. Paulo Cezar perdeu a maior parte de sua visão na adolescência e revela a sua mudança pessoal como conseqüência: “Depois que se fica cego, nossa subjetividade se abre em todos os aspectos, inclusive nas relações. O incômodo nos faz pensar”.
Pensamento
“Se o olho é a janela da Alma, então é necessário olhá-la com um olho diferente e, esse outro olho também é uma janela da Alma. A janela não olha, quem olha é o olho através dela”. O poeta Antônio Cícero comenta que tal metáfora não nos leva a uma realidade e dificulta o conhecimento sobre a visão, “porque você vai ao infinito e nunca chega na alma”, diz Cícero.
A partir deste pensamento sobre o olhar pode-se tirar a importância exclusiva dos olhos no momento do “enxergar”, afinal não vemos apenas com eles. É o que o cineasta americano Wim Wenders explica: “Vemos com os ouvidos, o cérebro, com o estômago e creio que em parte com os olhos, mas não exclusivamente”. Porém há quem dê muita importância à esse sentido, é o caso da atriz Marieta Severo que afirma que não ver o colega em cena, a desconcentra mais do que não escutá-lo. “ Minha cena se alimenta da troca com o outro feita através do olho no olho”, ressalta Marieta.
Ver ou não ver “that´s the question”?
Não enxergar, por tanto, é olhar além do que os olhos apreendem, e conseguir libertar o mais profundo sentido sobre algo ou alguém.
O neurologista e escritor americano Oliver Sacks desvenda sua “visão” sobre o assunto: “O ato de olhar não se limita ao visível, mas também ao invisível, é que chamamos de imaginação”.
A partir dessa fala de Oliver, a visão ganha um sentido ativo e importante que nega a idéia clássica de que o olho é uma janela. “Não podemos ver os olhos como janela da alma simplesmente, pois assim parece passivo e que as coisas apenas adentram. A alma e a imaginação também saem”, completa Sacks.
A importância da visão é uma marca intensa na humanidade, e se não ver nos leva além do visível, ver nos liga intimamente aos outros. É como a cineasta de animação inglesa Marjut Rimminen, que tem estrabismo profundo, comenta: “Treinei meus olhos, e hoje se olho para alguém, este alguém sabe que o estou vendo, antes as pessoas perguntavam com quem eu estava falando? Era muito desagradável, sentia falta desse contato que a visão oferece”, conclui Marjut.
Diante da “espetacularidade do horror” que o mundo apresenta e nosso conformismo com ele, com olhos saudáveis ou não, estamos todos cegos.
Terra de cego
Seguimos na ciranda do mundo, como diria o poeta “com olhos lentos e sãos”, para nos proteger de toda matéria negativa que a humanidade tem cultivado como causa e efeito de seus comportamentos, cada vez mais individualistas e egocêntricos. Mas a culpa é do que vemos?
Talvez a resposta seja positiva, mas o melhor é compreender que cada caso é um caso.
Hermeto Pascoal afirma que “A visão afasta a gente das coisas que realmente queremos ver”. Porém atribuir à visão tal destino, não seria de todo o correto.
Saramago nos esclarece ainda mais sobre esse papel da visão no caos social a que estamos nos encaminhando: “Nunca vivemos tanto na caverna de Platão como hoje, porque as imagens que nos mostram, substituem a realidade, estamos no mundo áudio-visual, olhamos sombras e cremos que são realidades”.
Estabelecer relações com o que vemos e o que sentimos, está cada vez mais distante e beira o contraditório, uma vez que o olhar pro si só não enxerga, é necessário sentimento para alcançar a real visão.
Neste mesmo sentido Oliver Sacks reforça: “Também vê-se com a mente, somos seres emocionais, nossa visão está intimamente ligada ao emocional, e depende dele para acontecer”.
Ainda sobre a desumanização do mundo através do olhar, pode-se atribuir parte culpa à necessidade de sustento e sucesso financeiro. É o capital regendo o que vemos.
“Antigamente os filmes deixavam um espaço nas entrelinhas para pensarmos sobre as cenas, hoje os filmes vem fechados, não nos dão tempo de sonhar, o sonho já vem pronto como querem que nós o recebamos”, comenta Wim Wenders sobre a falta de tempo que as mídias nos impõem.
Essa publicidade visual se torna cada vez mais excessiva e muda o sentido da visão: “Hoje nossos olhos não tentam nos dizer algo, tenta nos vender algo”, Conclui Wenders, que ainda soma ao consumismo a responsabilidade da nossa falta de atenção às coisas simples.
A falta de Auto-conhecimento e liberdade individual de se questionar sobre nossas atitudes, acaba trazendo à tona monstros que aniquilam nossas possibilidades de enxergar a verdade das coisas.
O filósofo francês Eugen Bavcar que, apesar de cego, é um fotografo famoso, revela as nuances que a visão (ou a falta dela), provocam no homem contemporâneo: “Vivemos em um mundo que perdeu a visão, a TV nos propõe imagens prontas, e não sabemos mais vê-las. Porque perdemos o olhar interior, o distanciamento. Vivemos numa espécie de cegueira generalizada”.
O fato é que, com ou sem a possibilidade da visão o mundo perdeu o interesse por ela, no sentido da contemplação ou mesmo absorção da realidade.
Os olhos, apesar de poderosos, estão se tornando uma janela passiva da alma, que consome imagens gratuitamente, e lesa os sentidos mais profundos das coisas mais simples. Mecaniza-se assim a humanidade, e as relações como um todo.
Homens enxergando o mundo sobre as óticas de outros destinando os seres do planeta à um futuro onde quem tiver um coração será rei!

4 comentários:

Camila Barbalho disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Camila Barbalho disse...

Que bonito teu texto, Marcito!
Foi o que tu fizeste sobre o documentário?
Seria adorável se toda revista conseguisse trazer essa linguagem suave que transporta as pessoas para o ambiente do escrito sem que elas percebam, como tu o fazes.
Parabéns!

Amo-te, coisinha puta merda da mamãe...
=D

Andressa Malcher disse...

lindo texto.

só agora li o que havias escrito no meu espaço. que bom que tropeçamos em nós mesmos. hoje contei a uma amiga que vive na austrália sobre o teu projeto de jornalismo cultural. ela pretende fazer pós-graduação em torno disso.
acredito que poderíamos colocar esse projeto pra frente, mediante ao blog. ou mesmo usar o espaço pra falar sobre a moça que vende canetas baratas em frente à unama, ou sobre os palhaços que animam festas e o dia da criança, enfim. tô me coçando pra escrever sobre essas coisas.

um grande beijo, amigo márcio.

Camila Barbalho disse...

Tô me coçando é pra ler um novo texto teu.
=D

Atualiza!
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